quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Filho de Paudalho

01
Filho de Paudalho, antiga zona-da-mata Pernambucana, e de José Maria Brasileiro, Maximino Leopoldino Brasileiro (38 anos) detesta sua mãe. Não pelos castigos de sua infância- que eram aplicados severamente a mando de Dona Saudade- tampouco pelo seu cheiro nauseante de manhã. O que Maximino não suporta em sua mãe é a ausência de um doador e suas sessões intermináveis de hemodiálise, que o obriga a voltar a “Pau-de-alho” a cada dois dias e a comer a terrível manteiga sem sal de tampa roxa nas manhãs de suas visitas.

Filho único, loiro e de olhos verdes. Coitado... É feio. Mas também, nunca me coube a idéia de um veterinário bonito, portanto, acho que o ofício caiu bem a feiúra e a feiúra respondeu muito bem ao ofício. Após três anos de cosmopolitismo, suas orelhas nelsongonçalveanas não mais acham graça no silêncio do fim do mundo, embora, nas folgas de Batira (que lhe obriga a almoçar enlatados) sente falta do arroz branco e do peito de frango sem sal preparados pela safadinha que pulou a cerca aos dezenove anos e que, vez por outra, lhe surpreendia com pedidos desagradáveis, valendo-se do remorso maternal.

Seus um metro e oitenta e três centímetros relutam para não lembrar de Cynthya, ou melhor, “Daquela-que-fora-Cynthya” (como disse o nosso querido e chulo D. H. Lawrence). Eu também não me esqueço, aliás, quem poderá esquecer “Daquela-que-fora-Cynthya”?!


02
Rapaz é assassinado a tiros em Cajueiro seco, o criminoso está foragido!
Segundo a polícia, o crime ocorreu na tarde da última quinta feira, perto do campo de futebol do bairro; vítima e assassino teriam se desentendido. O crime ocorreu por volta das 17h, na rua Logo Ali, o sujeito fugiu logo em seguida.
De acordo com a polícia, João Edson de Oliveira Peixoto, 22 anos, teria uma desavença com o meliante. Eles teriam brigado na última tarde e o criminoso teria disparado contra João Edson, que morreu no local. A polícia diz que não vai medir esforços para prender o desalmado que matou o filho da costureira Maria Helena da Conceição. Alguns suspeitos já foram cogita...


Desligou o rádio às pressas, arrumou seus trapos numa mala velha e saiu para visitar a mãe, desta vez, com muita vontade de visitá-la.



J.

A flor amarela

Aparição
Depois da desaparição, seu olhar e seu vagar não foram mais os mesmos. Desde então as quatro paredes de seu escritório ganharam um prisioneiro. As idéias iam ao mundo, seu corpo não ia além de alguns metros. Todos os seus traços humanos sumiram.
Seus olhos fundos, sempre rasos de lágrimas, novamente pousados sobre uma caixa de música (herança materna) daquela vez haviam se erguido.

Foi Esmeralda. A mente de Arnápio vagou da infidelidade à paternidade em um intervalo metafisicamente impossível. Embora sua alma gritasse quase em transe, o seu fúnebre corpo não conseguiu reagir a tamanho susto. Esmeralda aproximou-se, olhando fixamente o rosto que também descansava sobre o seu. Alguns intensos segundos se consumiram até que ela tirou do longo cabelo cacheado- herança latina- uma flor amarela, uma orquídea, e colocou na palma da mão de Arnápio. Pressionou, fechando a mão do homem contra a flor. Encostou sua testa na dele, sorriu inocente e deixou cair a lágrima única sobre o colo de Afonso, Arnápio Afonso Ribeiro, chamava-se assim.
Deixou-o sentado com a flor sobre a mesa e saiu sem dizer uma única palavra e, quase flutuando, sumiu. Foi esse o motivo que fez Arnápio passar quase três dias estático, sem nenhuma reação. Não dormiu, não comeu e muito menos se moveu. O acontecido perturbou a alma dele tão intensamente que queimou todos os seus pensamentos em uma derradeira e longa tragada.

A casa da família Ribeiro
Uma casa enorme e robusta, a arquitetura gótica revelava a sua idade medieval.
As abobadas iluminadas e as cores claras da casa sempre estiveram em perfeita harmonia com o colossal jardim colorido.
O que na verdade não condizia com a figura cadavérica que se tornara o seu dono, mas posso facilmente explicar esta contradição. Um dos trinta criados da casa chamava-se Colombo, filho de um antigo criado da família Ribeiro, era como um irmão para Arnápio. Depois que Esmeralda se foi, Colombo ficou encarregado de manter a casa em órbita, pois o dono não mais tinha ânimo para se atarefar com nada.

A descoberta
Há exatos três anos habitavam a casa da família Ribeiro, Arnápio, Esmeralda (a sua mulher) e seu suposto filho único, Felipe Rodrigues, sobrenome da mãe.
A casa sempre era visitada por um amigo íntimo da família, chamado Jacinto Castro, primo de terceiro grau de Esmeralda. Os três passavam as tardes dos sábados conversando e bebendo, mas o que o patriarca não sabia e que esta visita também comparecia nas sextas pela manhã.
Mas, como quase toda farsa, um dia veio à tona. E não poderia ter outro fim, afinal, numa casa com trinta criados não cabíamos esperar outro desfecho.
Colombo, amigo próximo, até conseguiu suportar em segredo as traições de sua patroa, mas quando soube que Felipe era um Castro, vomitou toda a trama ao seu irmão.
Na verdade eu, apesar de minha pouca idade, já esperava tal acontecimento, afinal, embora nutrisse intensa paixão por esmeralda, Arnápio vivia enfurnado na mesa de seu escritório. Amava Esmeralda como não havia amado ninguém, amava Esmeralda como nunca amara seu filho, ouso dizer. Mas só amava aos sábados, e Esmeralda adorava as sextas.

Arnápio mantinha uma fábrica de doces, aberta por seu avô, há mais de oitenta anos. Vivia em função disso. Mas Esmeralda gostava mesmo é de flores, todos os dias, antes de dormir, ele precisava ouvi-la se queixar, “por que você não vende flores? Melhor! Por que você não vende orquídeas?!”, e ele sempre com o mesmo adágio cafona, “Cada macaco no seu galho, cada macaco no seu galho, querida (fazia questão de falar duas vezes). Não sabíamos ao certo o motivo de sua paixão incontrolável pelas orquídeas, nem eu nem meu pai, que já trabalha pra família ha anos.
Quando a barca virou, quando o parto foi pago, quando o dilúvio caiu, eu não vi, mas pisei na lama. Os pormenores desta história, não poderei contar-lhes. Mas posso inventar. Sendo assim, mudem os seus olhos, agora sou um falsário!

Após a aparição e os três dias de morte, Arnápio despertou de sua transe. A flor amarela, caída no chão, já não era mais amarela. Ficara preta. Como se houvesse acordado de uma dessas manhãs que ninguém gosta de acordar, passou a mão no rosto numa tentativa inútil de afastar a dormência (vocês já perceberam o quanto é relevante passar a mão no rosto ao acordar? Certamente, mas ainda fazem isso com devoção não é?). Foi aí que a ficha caiu. Não. A ligação não acabou, se é o que pensas. Estou falando da ficha da realidade, esta fim-de-festa. Sua barba (antes feita) agora estava quase em seu joelho. Eu sei, é um pouco exagerado para três dias, mas não seria “descolado” (como fala uma amiga) e nem um pouco macabro. Uma coisa meio Poe, entende?
Voltando. Quando a ficha caiu, ele colocou outra. Quando percebeu que não percebia nada, entrou novamente em transe. Foram precisos mais três dias para que ele, enfim, acordasse.

Despertar
Quando as pálpebras se abrem, nem sempre o escuro se fecha. Mas não falo de um escuro preto, mas sim de um escuro castanho e encaracolado que cobria sua visão. Desajeitado- ou desesperado, não sei- tentou tatear sobre a mesa seus óculos, ao mesmo tempo em que afastava os cabelos da sobrancelha para que pudesse enxergar a mesa. Assim que o encontrou e pôs na cara, se ajoelhou sobre o chão e sua barba!

-Ahhhhh!-

Suas cordas vocais voltaram a funcionar. Os fios da barba são como farpas encravadas em polegares. É sempre doloroso arrancá-los. Com o grito, que segundo meus critérios, não fora nada baixo, atraiu a atenção de vários funcionários que ali trabalhavam. Foi assim que se encerrou a clausura do nosso amigo. Encontraram Arnápio deitado no chão, com a flor que já fora amarela em sua mão. Mas o que eles nunca puderam observar, é que as suas sobrancelhas cobriram os seus olhos, e estes choravam. Não choravam por tristeza. Não pranteavam por medo. Carpiam-se, eu acho, por não ter mais o que fazer. Dois olhos emancipados, dois olhos tristes e encobertos. Dali fora arrastado até seus aposentos, aonde foi feita a assepsia do corpo derrotado de Arnápio Afonso.

Dias seguintes
Nada de incomum foi notado nos dias que se sucederam (o que já é um fato incomum). Saia, rigorosamente, às sete da manhã, trabalhava com a mesma religiosidade de sempre, ou melhor, com a mesma religiosidade que mantinha quando também mantinha sua cara-metade, sua farofa de banana, sua cedrát da manhã, uma besta-fera não manifesta.
Derradeiro e esperado
Na manhã da segunda 14, ninguém percebeu que o vulto que sempre abandonava a casa às sete da manhã, desta vez não passara. Ninguém percebera também, que o banheiro do corredor estava intacto (Arnápio sempre o usava, pois odiava suítes). Não perceberam por que talvez não fossem pagos para perceber nada.

Mas eram pagos para forrar a cama.

A cama que também estava intacta.

Meu irmão Arnápio, fugiu de casa há exatos 10 anos. Fugiu nu e isso me incomoda.
A flor que fora amarela, nunca mais a vi.
Mau pai, ainda cuida do jardim.


J.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Quando Dorotéia voou

Quando o primeiro homem foi ao espaço, não viu Deus.
Quando Dorotéia voou, também não.

1º andar: Eu fazendo o bolo e ele comendo...
2º andar: Eu suando e ele também...
3º andar: Eu fazendo coxinha e ele lambendo...
4º andar: Eu abrindo o leite e ele mamando...
5º andar: Eu me fodendo e ele fodendo...
6º andar: Eu calada e ele gemendo...
7º andar: Eu sem nada e ele gemendo...
8º andar: Eu escrava, ela também...
9º andar: Eu-panela, ele nela...
10º andar: Ela nele, panela-eu...
11º andar: Eu gritei, ele gemeu...
12º andar: Eu subindo e ele gemendo...
13º andar: Eu morrendo e ele gemendo...
14º andar: Será que dói morrer?!
15º andar: Ele vai morrer de remorso!

Quando o primeiro homem foi ao espaço, não viu Deus.
Quando Dorotéia voou, também não.

J.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Coisas só dos homens

Levanto cedo,
Tento andar.
Meus olhos estão pesadíssimos
E não me deixam andar

Na boca
O gosto ruim de ontem

Na cabeça
Coisas da cabeça

Na alma
Coisas das moças.


J.