quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Mais um conto (fresquinho)


O homem de preto

Bendita conta!
Toda sexta-feira ele chega de mansinho e toca delicadamente o meu ombro.
É o carinho, antes da tapa; A faísca, antes da explosão; A curva que a bola faz antes de bater na trave e correr para a linha de fundo. Mostra-me, num misto de sutileza e perversão, a pasta preta, aparentemente muito inocente, abro-a. É quando a noite acaba. Ela vem com o homem de preto, se acomoda em minhas palmas e leva-me tudo.
Bendita conta!
Pesadelo dos bêbados, das putas, dos viciados, dos vagabundos, dos pais, das mães, dos ladrões, dos evangélicos... Ou seja, do povo.
Carnaval e conta são as duas únicas coisas que são feitas pelo povo e para o povo.

Última sexta-feira
Eu não sei a quem odeio mais, se é o homem ou a pasta.
Combinemos que os dois são inconvenientes, mas não posso ficar “em cima do muro”. Escolho o homem, afinal, detesto ver aquele sorriso cínico e aquela educação do ofício, sem levar em consideração o seu traje fúnebre. Nesta última sexta ele estava com a gravata vermelha, não a suporto.
Serviu-me bem, tirando o fato da segunda cerveja, veio quente, mas foi rapidamente substituída. Não posso lhe negar o elogio da eficiência. Guiava a bandeja com maestria, aquela coisa redonda e brilhante, alegria da mesa, era conduzida por um experiente, porém maquiavélico, garçom. Era como um bom jogador desleal, que sempre usa uma camisa com numero impar.
Estava eu na mesa com mais dois amigos, o Rosa e o Daniel.
O Rosa era amigo antigo, conheci quando ainda morava na casa dos meus pais, e Daniel conheci um dia antes, na quinta, numa dessas peladas de velhos.

“Sobre a mesa” e “Descrição”
Sobre a mesa, além da toalha xadrez, de bom gosto, estavam acomodados dois copos americanos de cerveja, uma taça de alguma bebida doce que o Rosa pediu (provavelmente uma dessas bebidas que são feitas para as mulheres), uma carteira de cigarros e o cinzeiro companheiro. Além dos meus cotovelos e de uma mosca pousada na boca do meu copo, nada mais descansava sobre aquela mesa.
O bar dessa esquina não tinha nada de mais. E é por isso que me atraía, aliás, me atrai.
Um balcão brega e de azulejos brancos combina perfeitamente com as paredes, também de azulejos brancos. As enormes portas, são três, permitem que, mesmo de longe, se aviste o vermelho “WC”, escrito na porta do banheiro unissexo.
O chão de cimento batido contrasta lindamente com o resto do ambiente, tudo isso encantado com a belíssima voz de Carlos Alexandre, embora o som de um desses carros rebaixados, nesse dia, atrapalhasse a harmonia do local.

O cachorro marrom e branco
No pé da mesa vizinha estava Pedro, deitado no chão, esperando que alguma alma bondosa lhe arremessasse um osso, ou qualquer outra coisa mal vinda ao estômago humano. O canino já pairava nos 12 anos, com um de seus olhos cegos, recebia carinho e atenção do seu dono, o dono da bandeja. Este cachorro era praticamente um boêmio, encostado em uma mesa de bar, onde sempre fica até o amanhecer. Embebedado pela noite, a espera de um amor clandestino.

Pedido inconveniente
Aproveitei o silêncio da troca do CD para pedir uma porção de tripa frita, pedido este que não teria feito se fosse me dado o dom dos videntes. Na mesma hora em que Balthazar começou a entoar “Sara”, Rosa acendeu o cigarro e cuspiu,
-Esse país não vai pra frente não! Comé que um presidente, entendeu? Um presidente! Fala isso pro povo?! Isso é um desrespeito rapaz! Nunca vi uma coisa dessa, a pessoa chega falanu isso para o povo, inda mais senu o presidente! Entendeu?-
Daniel,
- Mas rapaz, é mermó! Nem tava lembranu disso... Como é que um chefe de estado fala uma palavra dessa?! Se eu tivesse lá eu tinha jogado um tijolo no meio das testa dele!-
Batendo na mesa, discordei,
-Mais veja só... vocês também num fala essa porra? Intão o que é que tem de mais o homi falar? Eu num vejo nada de mais, ele num é um homem normal? Concorda?-
Revoltado, Daniel, tocando o meu ombro, como se eu não estivesse prestando atenção, indagou,
-Tu já visse o presidente dos Estados Unidos da America falar uma coisa dessa?-
Tocou meu ombro mais uma vez,
-Tu já visse o primeiro ministro da Inglaterra falar uma palavra dessa?! Num viu não rapaz! Por que lá é país de homi! Se o cara falasse uma coisa dessa lá...rhum! Sei não viu...O pau cumia nego!-
Completou Rosa,
-Isso num existe não rapaz! Essas coisas só acontece aqui mermo, pq todo mundo faz o que quer nessa merda, Entendeu? Tão dizendo por aí que até dar o oiteco agora é normal! Entendeu?-
Perdi a paciência,
-Puta que pariu! Entendi cacete! Tu vai fica repetinu quantas vezes essa porra dessa palavra? Carai mim, tu é fodinha tu visse!-

As tripas ocuparam nossas bocas!

Silencio para as tripas
Foi o único e mais longo momento de silêncio naquela mesa.

Para mudar o rumo
“do Lat. Vomitare

v. tr.,
lançar pela boca o conteúdo gástrico;

jorrar;

fig.,

proferir com intenção de injuriar;

dizer de seguida sem resguardo ou pudor;

despejar;

jorrar;

desembuchar;

pop.,
contar o que era segredo.”

Foi o que me aconteceu. Eu sei que este não é o assunto que ocuparia a tarde de uma distinta senhora da orla ou de um homem de bem, mas quem gosta de agradar é puta, portanto, fiquemos com a verdade.
Depois disso não lembro mais de nada. Pulemos para o meu despertar então!

Bom dia bêbado imundo!
Meus olhos úmidos, de vômito e lambidas canina, abriram assim que o toque, nada delicado, da mão calejada do garçom balançou o meu ombro, balbuciando um,
-Bom dia bêbado imundo!-
Tudo bem, eu admito, não foi isso que ele disse, mas foi o que ele queria dizer.
-Bom dia!- Disse ele.
-Vai dar meia hora de cú felá da puta!- Respondi.
Mentira. Eu não falei isso, mais queria ter dito.
-Bom dia querido!- respondi.
Levantou-me. E eu cambaleando ainda consegui chegar a cadeira mais próxima.
Me recompus e já ia saindo do bar quando seu Plácido gritou,

-Ei rapaz! Num vai pagar não é?!
.
.
.
J.

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