quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Mais um conto, bem antigo e imaturo.

Relato de Abílio

Introdução
Esta pode parecer uma história feliz, mas não te enganes. Renato foi feliz uma única vez. Na hora da morte. Sua vida não passou de uma mentira e sua morte foi mais uma. Por que Renato não morreu, pra falar a verdade, acho que nem viveu. Sua história se resume a uma única aventura de amor, ou melhor, de mentira.Morreu aos 23 anos, por ele teria sido antes. Morreu em casa, só. Tu deves estar se perguntando como eu sei de tudo isso? Fui o seu único e verdadeiro amigo, mas na hora de sua morte não pude estar presente, pois fui mais apressado que ele.No dia 02 de agosto a cortina vermelha desceu para o vão que foi a vida de Renato Lágrima, que trazia a tristeza em seu nome. Quando as luzes apagaram a única coisa que se ouviu foi o silêncio dos olhos pasmos. Morreu assim, sem palmas, como se a ribalta não o alcançasse, como se não fizesse parte do espetáculo.

Nº 28
Lembro-me da ultima vez que o vi. Éramos jovens e vivíamos no mesmo quarto de numero 28, no orfanato “Colinho de painho”. Não me lembro com detalhes da nossa conversa, mas, se não me engano, era algo sobre comunicabilidade. E ainda nesta noite, já enrolado no lençol, ouvi ele me balbuciar um “Obrigado Abílio!”.E apesar de não entender muito bem, respondi-lhe, - Por nada Renato!-No outro dia não acordei. E só assim pude entender o seu obrigado, percebi que, além do cigarro, era eu a sua única companhia. Deixei Lágrima no dia 17 de agosto, estávamos com 17 anos.Soube que um ano após a minha morte Renato mudou-se para Rua Santa Cruz, que hoje se chama Rua Doutor Ricardo Borges Pinto, no bairro Caixa D’água.
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Sonhos
Todo dia, após o almoço, subíamos para o quarto e, antes da sesta, compartilhávamos sonhos. Numa destas prosas contou-me Renato sua mais intima aspiração, que me pareceu simples, mas em se tratando de Lágrima, não é de fácil entendimento, por isso não vou contar-lhe o contado, não é necessário que eu encha a tua cabeça neste momento. Não fique curioso, quem sabe em momento mais oportuno eu revele? O que é preciso que entendas neste momento é que ele me contou uma de suas intimidades e iste era o primeiro sinal de confiança que ele depositou-me, não sem antes fazer-me jurar segredo. Nunca havia dito desejos tão pessoais, pelo menos a mim. Entendes agora o motivo do meu espanto?Descemos juntos, ainda no mesmo dia, para jantar. Renato com sua roupa de sábado, eu com meu traje de sempre. Ah! E eu quase ia me esquecendo, Renato tinha uma perna menor que a outra, a direita, e por isso usava uma bengala de Jacarandá que ganhara de Enéas, no natal passado. “Não é só uma bengala! É uma companheira de grande estilo!”, disse Enéas ao entregar-lhe o presente. Deste dia em diante não largou mais a vareta.Sentamos no mesmo local de sempre, longe dos meninos e longe das meninas, comemos a mesma comida de sempre e voltamos no mesmo horário de sempre. Lembro-me perfeitamente da afobação que eu sentia ao chegar perto dos meninos, não que com as meninas fosse diferente, mas, claramente, não chegava aos pés... Não sabia o motivo, mas também sempre procurava fugir do assunto e falar de política, futebol, religião, enfim, qualquer outra coisa.

Ateus
Relendo o capítulo anterior, lembrei-me de certa ocasião em que Renato falou-me que não confiava nos padres e, muito menos, nos papas. “Não acredito nesses carecas! Só falam, falam e falam, mas sair do canto que é bom, nada!”. Afirmava com tanta veemência que fez-me perceber suas insatisfações religiosas. Não o julgue pelo que lês, acho que, em certos pontos, eu também concordava, mas tinha medo. Hoje, analisando os fatos passados, cheguei a uma conclusão:
Éramos ateus (que coisa sem graça...).

Alcova
Recordo-me das visitas em minha alcova no dia do meu falecimento, não eram muitas, mas eram verdadeiras. Estavam presente Renato, Enéas, Alves, Berenice e mãe Jurema. Ninguém chorava, mas não me incomodei, afinal, eu também não costumava chorar em enterros. Do lado de fora do quarto havia dois ou três meninos espiando pela fechadura. Hoje os agradeço por estarem ali, pois me deram outro capítulo.

Meninos
Dias após a minha morte os meninos inventaram motivos para ela. Alguns dizem que morri sufocado, outros dizem que de pecado, mais o que mais me incomodou, e unanimemente aceito por todos, foi o da moléstia. Da onde contraíra a tal moléstia?!Surgiram várias explicações, alguns diziam que peguei da comida de dona Ziza, a senhora da cantina, tese fundada em minhas freqüentes visitas a Mágno, filho da senhora, que servia-me de Companhia nos sábados em que Renato saía para visitar seu tio Tenório. Dona Ziza não tinha uma das mãos. Outros diziam que peguei a moléstia da perna de Renato, diziam os meninos que a perna dele tinha vida própria e que quando ela quisesse sairia do seu corpo a procurar outra que lhe combinasse o tamanho e juntas sairiam por aí chutando as bundas dos cegos.Eu acreditava em parte, mas não achava que ela procuraria um par e também não acreditava que ela passasse moléstia para outros.É importante ressaltar que este foi um dos motivos que contribuíram para a saída de Renato, após completar a maior idade.

A despedida
Um ano e dois meses após minha morte, Renato foi morar no bairro da Caixa d’água. Sua despedida não foi calorosa nem fria, poucos amigos e pouca comoção.Levara apenas um par de roupas, sua bengala, e o dinheiro que lhe deixei. Seu tio lhe comprara uma casa, não era lá essas coisas, mas dava para sobreviver. Situada ao lado de uma pensão, a casa tinha lá seu charme. Arrumara a casa a seu modo, ainda lhe faltava muita coisa, mas havia de comprar assim que começasse a trabalhar no escritório do tio. Seus novos visinhos doaram-lhe alguns trapos velhos que serviriam para diminuir o oco da casa enquanto não providenciasse móveis novos. Trocaram cumprimentos, boas vindas e nomes, apesar de não lembrar muito bem dos nomes, Renato não se esquecera de Emiliana. Desta, falo outrora, convém apresentar-lhes Tenório.
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Tenório
Irmão de Eusébia, mãe de Lágrima. Sentia-se na obrigação de dar um futuro para o pobre órfão. Não tirara antes do orfanato por motivos burocráticos, vou-lhes explicar em outra oportunidade. Os seus cinqüenta anos já se afastaram muito e por isso não perderia a oportunidade de arrumar um nome para os seus testamentos. Apesar da aparência não me parecia mal sujeito, chegou até a enviar-me doces. A única coisa que me incomodava era o fato de ele ser solteiro. Como pode um homem de certa idade ser solteiro?
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Agora sim, Emiliana
Dentre todos vizinhos só enxergara a enteada de dona Lúcia. A dona de olhos pretos. Era uma boa moça, Emiliana. Lavava, passava, cozia e tudo mais. “É uma santa!”. Exclamava Dona Lúcia. E de fato tinha razão.
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Paixão à segunda vista
De primeira nem tanto, mas de segunda...Apaixonou-se perdidamente por aquela moçoila. A primeira vez é inesquecível. Lembrei-me da minha, apaixonara-se certa vez vês por um moço do quarto 16, apesar de nunca ter dirigido o meu olhar ao seu, sabia que não havia fundamento.O mesmo não aconteceu ao Renato, dizem as más línguas que até beijos foram trocados.
Não acredito muito.
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O fim
Dois anos mais tarde Emiliana mudou-se para Santa Lucia, deixando meu amigo. Ainda penou durante uns três anos antes que o enfarto o encontrasse.
J.

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