terça-feira, 15 de setembro de 2009

A velha e o velho

Observava fixa e atentamente aquele episódio nada extraordinário,

Um velho rabugento saia de uma mercearia próxima à minha casa. Levava na mão uma dessas sacolas de supermercado e nas costas uns oitenta anos. Já na beira da rua, ou fim da calçada, olhou para os dois lados, para trás e, logo que viu a senhora, atravessou. Preocupação primeira e única.

Reflexão pessoal:
Nunca havia verificado efeitos tão profundos da velhice. Mesmo em minhas avós, tios-avós, bisavós... Sim! Conheci minhas bisavós, mas voltemos à senhora do senhor da mercearia. Foi medonha a pena que senti ao ver aquela, também rabugenta, senhora. Não sabia, e até hoje não sei, se devia sentir-me triste pelo deplorável estado dos dois, o velho também era velho- embora menos que ela- ou se devia admirar o exímio trabalho da velhice. Nunca vira trabalho tão bem acabado, literal e metaforicamente falando.

A senhora de setenta anos, acho eu, e seus magníficos olhos azuis, de um azul realmente vivo (acho que era o único resquício de vida daquele corpo), no meio-fio esperava para atravessar, enquanto o velho já se distanciava uns vinte metros, sem demonstrar a menor preocupação. E eu observava com os ombros encostados numa dessas árvores centenárias próximo ao ponto de ônibus. Dali julgava o velho irresponsável como uma metralhadora de adjetivos. Embora também não fizesse nada pela velha. Não sei se por preguiça ou por uma vontade maior, uma espécie de atração, que me motivava a apenas observar a cena nada incomum, sem interferir no seu desfeche.
Depois do obstáculo rua, vieram os degraus, buracos e rampas daquela calejada calçada. Nesta hora preocupei-me ainda mais, na mesma proporção que aumentava o ódio que sentia pelo velho. Foi tanto que uma hora parou. Parou exatamente quando acabaram as balas da metralhadora. Nesta hora cada buraco era uma parca, cada rampa um pulsar mais forte, meu é claro, mas a velha seguia firme, embora lenta e perigosamente. A cada obstáculo vencido, um sentimento de alívio.
Agora já não odiava mais o velho, mas sentia pena. Sentia pena, por que imaginei o mal maior. Imaginei a morte da velha. Sentia pena do velho só por imaginar o tamanho do remorso que ele sentiria. Não há sentimento pior, e por isso agora odiava a velha. Sim, é isso mesmo. Eu a odiava.

O velho continuou seguindo o seu destino, sempre na frente da velha, até entrar em sua residência, uma casa de azulejos rosados a poucos metros da mercearia. A senhora, porém, ainda não havia chegado ao seu destino. Continuou caminhando sem interrupções, embora com a vagarosidade dos anos, mas com os pés sempre firmes. Mas eu não confiava muito naqueles pés, não sei o porquê, mas não confiava. E foi aí que percebi que a raiva que eu sentia não era do velho, muito menos da velha, mas era daqueles pés. Eu detestava os pés daquela velha. Eram eles os culpados pelo pender da velha, pelo possível remorso do velho e por toda minha preocupação. Eu, definitivamente, odiava os pés daquela velha.

A velha, apesar de todas as minhas inquietações e, talvez, com uma expectativa doentia de tragédia, seguiu firme, atravessando todos os obstáculos urbanos, até entrar novamente em sua residência, sem que nada acontecesse.


J.

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